sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O bom combate



Nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, um capelão brasileiro protestante serviu seu país e seu Senhor contra os horrores do nazi-fascismo





Em alguns filmes de guerra, de vez em quando aparece a figura do capelão: um sacerdote com patente militar que dá o apoio espiritual aos combatentes nas bases e no front. Hoje há tanto escolas militares de capelania quanto ministros de Deus que se alistam para levar a Palavra aos campos de batalha, onde ela é bastante necessária, pois muitas vezes um soldado volta com seu corpo físico sem danos, mas com seu espírito e sua alma severamente mutilados.

O capelão, contudo, não diz respeito somente à caserna. A capelania civil permite que pessoas com restrição de movimento (internos em hospitais ou prisões, por exemplo) tenham acesso à assistência espiritual, já que não mais podem tê-la regularmente.Só que, nos mesmos filmes, quase sempre aparece um capelão católico. Entretanto, há capelães protestantes.

Com a FEB

Na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, nossos pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) tiveram capelães que foram determinantes em conquistas como a de Monte Castelo, na Itália, em que os soldados daqui ajudaram a derrubar os fascistas de Mussolini, que colaboravam com os nazistas de Adolf Hitler.

O pastor brasileiro Juvenal Ernesto da Silva, formado em letras e teologia, fluente em italiano e inglês, fazia mestrado em Nashville, nos Estados Unidos, quando a base de Pearl Harbor, no Havaí, foi atacada de surpresa pela marinha japonesa em 7 de dezembro de 1941, fazendo com que os norte-americanos entrassem na guerra. No ano seguinte, Juvenal voltou ao Brasil.



Suas credenciais o tornavam mais do que apropriado para o que aconteceu: foi convocado pela FEB como capelão. Ciente dos desígnios de Deus para sua vida, Silva deixou aqui esposa e filho pequeno e seguiu para o front italiano com o 6º Regimento de Infantaria (6º RI), no segundo escalão do exército enviado.

Embarcou com o regimento e recebeu sua farda completa e demais equipamentos, mas algo diferia seus instrumentos de trabalho dos demais soldados: faziam parte de seu kit uma Bíblia Sagrada e um pequeno estojo com cálices e garrafa para realizar a comunhão da Ceia.

Com os pracinhas, Juvenal (foto ao lado) não tinha privilégios. Passou com eles fome, frio e medo, mas tinha sempre em mente que trabalhava para o Senhor no teatro de guerra europeu. Confortava os feridos e doentes, assim como os que iam sair para o front, ou voltavam dele – e muitas vezes esteve com eles. Algumas vezes, o capelão teve até mesmo que sepultar alguns em pleno campo de batalha. Armava e desarmava acampamentos, cavava trincheiras.

No calor do combate, o capelão era procurado pelos outros militares – protestantes, católicos e até ateus. As reuniões aconteciam em qualquer lugar sempre que o combate permitia. Podia acontecer até com pequenos grupos de soldados e, segundo Juvenal, até mesmo um só. Com os pracinhas, o pastor de guerra temia não voltar para casa, perdia a noção real do tempo, dormia quando possível (sempre pouco e tensamente) comia o que dava para comer – quando havia comida – e sobrevivia. Sempre com a fé. Ele mesmo, acostumado a visitar pacientes nos hospitais e enfermarias de campanha, acabou sendo um por um tempo, internado com duas costelas quebradas.

Em Montese, o capelão batizou um soldado por aspersão usando a água de seu cantil, que consagrou, à sombra de uma oliveira,ao som de um bombardeio. Outro batismo de que se lembra bem foi realizado entre as ruínas de uma outrora imponente casa.

Juvenal falava da verdadeira vida em pleno território em que a morte estava continuamente presente.

O horror

O correspondente de guerra brasileiro Rubem Braga, mais tarde famoso como um dos maiores cronistas do País, citava em seus escritos sobre a guerra a angústia de ver cidades e a natureza de um país tão bonito quanto a Itália ser arrasado pela guerra, transformando belas obras de arquitetura e urbanismo em miseráveis escombros, e pessoas dignas em algo que beirava a não humanidade. Juvenal também testemunhou isso. Em uma entrevista não muito antiga, contou seu horror ao ver uma senhora passar com uma perna de cavalo em estado de putrefação no ombro, contente pela sopa que faria com ela para sua família. Numa cidade devastada, sentou-se num momento para comer a última laranja de sua mochila, que recebera do exército. Assustou-se com um barulho que vinha de trás. Viu três italianos muito magros, que pegavam as cascas que ele jogara e comiam. Repartiu com eles a fruta, que todos comeram em silêncio.

Obviamente, ver esses horrores e outros maiores ainda eram um convite a contestar sua fé. No entanto, o capelão não voltou atrás em seu caráter de servo de Deus. Além disso, ver o povo naquele estado enquanto Mussolini empregava as riquezas do país para ajudar o Eixo só o fazia ter mais força para lutar contra a força nazi-fascista e libertá-los. Mas Juvenal seguia em uma luta ainda maior: pregar aos soldados desesperados e quase descrentes de tudo. Mesmo assim, prosseguia.

Outro aspecto que Braga relatava em suas crônicas e fazia questão de deixar bem claro era o fato de que nem todo alemão ou italiano era adepto do nazismo e do fascismo. Ele, como Juvenal, via de perto o sofrimento do povo europeu que presenciava a guerra em seus próprios quintais. Como o personagem Abraham Erskine (Stanley Tucci) diz no recente filme “Capitão América: O Primeiro Vingador”, “o primeiro país que os nazistas invadiram foi o próprio”.

Nos passos do Mestre

Relatos de correspondentes e combatentes brasileiros em relação à Segunda Guerra frequentemente mostram a precariedade de condições físicas e psicológicas do front.

Receber uma correspondência da família no front era um privilégio almejado dia e noite por muitos. Obviamente, nem todos conseguiam isso. Como os pracinhas viviam em movimento, era difícil localizá-los. Além disso, os envelopes, pacotes e caixas eram quase sempre violados até mesmo pelos próprios brasileiros, e extraviavam-se com facilidade.

Juvenal diz que, certa vez, uma caixa de bombons foi enviada a um soldado brasileiro por sua mãe. O pacote chegou por acaso às mãos do capelão, aberta, e quase sem os doces, de tão poucos. Sabendo que qualquer conforto, ainda que ínfimo, era deveras valioso naquelas circunstâncias, resolveu procurar o pracinha para entregar o presente. Ao descobrir que ele estava em combate, resolveu ir a campo atrás dele. Foi alertado pelo comando para não ir, mas contrariou o aviso.

Não eram simples bombons que estavam em questão, mas uma expressão do amor e da esperança de uma mãe para com seu filho. Tomou o caminho da frente de batalha. Vendo aquilo, um jovem soldado, mais experiente, resolveu acompanhar o pastor. Quando passavam por uma área perigosa, o rapaz, em sua experiência, identificou o que atravessariam: um campo minado. Ao menor passo em falso, iriam pelos ares.

“Quanto ao trato dos homens, pela palavra dos teus lábios me guardei
das veredas do destruidor.

Dirige os meus passos nos teus caminhos, para que as minhas pegadas não vacilem.”
 Salmo 17:4-5

O militar, que não passava de um garoto de farda, orientou o capelão. Ele iria na frente, tentando achar pontos seguros onde apoiar os pés, e Juvenal deveria pisar exatamente em suas pegadas. O pregador percebeu algo interessante: seu bom guia tinha pés muito grandes, que deixavam pegadas enormes, e ele, cujos pés eram pequenos, podia pisar nelas com grande facilidade.



O destinatário recebeu seus bombons entre as trincheiras.

E o capelão Juvenal voltou ao seio da família no Brasil, após o Eixo ser derrotado. No final, tudo foi uma questão de ter seguido o caminho correto, todos os dias sabendo firmar seus pés nos lugares certos.

“Porque para isto sois chamados; pois também Cristo padeceu por nós, deixando-nos o exemplo, para que sigais as suas pisadas.”

1 Pedro 2:21

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